Por Elpídio Rocha*
Iniciando a narrativa, a câmera apresenta o cenário e acompanha o ônibus que segue por uma estrada de terra. Em seguida, um carro ultrapassa o coletivo e desperta a atenção de Luciano, fotógrafo que incorpora o herói prestes a sair de sua “zona de conforto”, seu cotidiano tranquilo, e envolve-se numa aventura policial em que os riscos crescem ao longo da projeção. Existe uma mulher em perigo e Luciano, assumindo a persona do mocinho da história, parte em socorro da vítima.
A trilha sonora reforça o suspense e acompanha o resgate de Laura, jovem viúva perseguida pelos criminosos. A dupla de protagonistas escapa e, literalmente, corre durante um bom tempo antes de estarem seguros e livres dos malfeitores – na fuga é inevitável a luta com os criminosos, a perseguição de um cão e o confronto mortal com um dos vilões.
Em Os Treze Pontos, produção de 1985 dirigida pelo mineiro Alonso Gonçalves (também intérprete do herói Luciano), temos a história de um personagem envolvido, por acaso, na trama em que os bandidos buscam um “livro de capa preta” com a fórmula mágica para acertar os 13 jogos da loteria esportiva. São os anos oitenta e a loteca – avó da quina e da mega-sena – representa a fantasia do enriquecimento rápido.
O falecido marido de Laura (interpretada por Helenice Aleixo) era um matemático e especialista em computadores que tinha o objetivo, ou a obsessão, de encontrar a fórmula dos números, estatísticas e cálculos para vencer o desafio da loteria esportiva. Ao conseguir o sucesso, é morto e coloca a esposa como alvo da quadrilha liderada por Ayres (Pedro N. Campos).
Cinema Policial e Mineiro
São essas informações que norteiam a construção da história de Os Treze Pontos, obra inserida no gênero policial – categoria clássica do cinema que aborda o crime e seus vários elementos característicos: roubos, criminosos, detetives, perseguições, mistério, mortes, etc. Consagrado e difundido pelo cinema americano, o policial tem suas ligações ancestrais com os filmes de gângsteres dos anos 1930 e as produções em preto e branco de 1940, os filmes noir que tanto influenciaram (e influenciam) títulos consagrados como Chinatown, Blade Runner, A Estrada da Perdição e Los Angeles – Cidade Proibida.
O crime é o ponto de partida para narrativas que assumem as particularidades e características dos países em que os filmes são produzidos. França, Itália, Hong Kong, Coreia do Sul se apropriam dos elementos típicos das produções dos Estados Unidos adaptando-os aos valores, significados e temperos locais. E, obviamente, os brasileiros estabelecem sua nomenclatura característica nas produções nacionais.
Historicamente, O Assalto ao Trem Pagador, de Roberto Farias, ocupa papel de destaque na cinematografia policial do país; é a história de um roubo que incorpora a crítica social na organização e execução de um crime quase perfeito. Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia e Pixote, ambos de Hector Babenco, prosseguem com a abordagem das mazelas sociais e o retrato dos marginais e marginalizados. Já O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, caminha pela experimentação linguística e estética oxigenando a narrativa fílmica. E não podemos esquecer os campeões de bilheteria da Retomada: Cidade de Deus, de Fernando Meirelles e Kátia Lund, e Tropa de Elite, de José Padilha.
Todos os filmes citados se estruturam incorporando as peculiaridades do Brasil, mas são representantes de um modelo narrativo carioca ou paulista. Em contraponto, temos as particularidades de Os Treze Pontos: uma produção mineira filmada em cenários locais com elenco de “gente como a gente”. Minas Gerais sempre foi um espaço geográfico muito referenciado pelo cinema nacional – e aí está o xis da questão: o espaço físico, humano e cultural, na maioria das vezes, é trabalhado por diretores que não são naturais do Estado.
A representatividade de Minas vem das origens do cinema nacional com as produções de Humberto Mauro, mineiro de Cataguases, que construiu uma obra sólida e legitimamente brasileira trabalhando com os elementos típicos do ambiente rural numa narrativa fluida e efetivamente cinematográfica. Apesar do pioneirismo de Mauro, Minas Gerais, como a maioria dos estados brasileiros, precisa recuperar e valorizar cada vez mais a sua produção local estimulando o trabalho contínuo de novos cineastas.
Em Os Treze Pontos estão os espaços rurais e urbanos marcados pelas características da época reveladas também pelos carros, ônibus, vestuário, casas e telefones – tanto o fixo quanto o típico orelhão de ficha tão comum nas esquinas. E os personagens falam e se movimentam como pessoas que poderíamos encontrar casualmente pelas ruas da cidade naquela década de 1980. No figurino “oitentista”, vale a pena destacar o chapéu, o blusão e o embornal de Luciano – elementos que individualizam e identificam muito bem o herói da aventura.
Narrativa Popular
O filme traz as imagens necessárias para valorizar o teor de ação e aventura da história: são cenas de luta com socos à vontade e armas diversas como facas, revólveres e até a lança improvisada do protagonista. Existe uma noção interessante de movimento no desenrolar da trama já que os personagens mantêm uma fuga constante dos bandidos e deslocam-se em busca de segurança e proteção.
O humor também é uma característica em Os Treze Pontos. O encontro do casal com um bêbado oferece um respiro para os risos durante a escapada; e o bêbado se apresenta conforme o tipo humorístico que já esperamos: fala “enrolada”, terno xadrez e andar cambaleante à procura do seu cachorro. Da mesma forma, o trio de criminosos que invade a casa de Luciano e o enfrenta numa coreografia de socos, pontapés e caretas é bem eficiente ao provocar sorrisos na plateia.
Obviamente, o convívio de Laura e Luciano promove o envolvimento sentimental do casal. O herói vai se encantando com a viúva indefesa e começa a experimentar emoções que vão estabelecendo a já tradicional perspectiva romântica. Cabe aos espectadores torcer pelo casal à espera de um final feliz.
Temos, portanto, a construção de uma narrativa cinematográfica popular que não tem medo de trabalhar na conquista do público, utilizando os elementos do cinema de gênero para atrair os consumidores. A história policial identifica muito bem os bons e os maus; a trama vai aos poucos estabelecendo a relação sentimental dos protagonistas; os momentos de ação e de suspense são elaborados no desenrolar do filme; o humor aparece para valorizar cenas específicas do roteiro. A receita é costurada de acordo com a concepção tão pessoal do diretor Alonso Gonçalves.
Cineasta Mineiro
Natural de Formiga, município do oeste mineiro, Alonso José Gonçalves nasceu em 1943. Apresentando-se como autodidata, aos 13 anos desmontou uma câmera fotográfica para construir um protótipo usando lentes e caixas de papelão. Sem curso formal, começou a produzir e dirigir seus filmes, na década de 1970, com o dinheiro que ganhava num laboratório de fotografia. A curiosidade guiou o cineasta para os conhecimentos em ótica e efeitos especiais.
Aos 74 anos, Gonçalves possui uma filmografia que inclui títulos como A Testemunha (1971), Caçado (1976), Somewhere in Brazil (1990), Os Fanáticos (1996) e Confronto Final (2005) – estrelado por Jackson Antunes, o filme conta a história de Marco Ferranti que, após um assalto, vai obsessivamente transformando a sua casa numa fortaleza para evitar a criminalidade.
Em entrevista ao jornal Hoje em Dia, o diretor afirma que já foi “chamado de trash, mas também elogiaram a qualidade das minhas cenas, não só as de ação como as que tinham atores dialogando”. E o interesse pela interpretação do elenco garantiu a Dalmy Veiga o prêmio de melhor ator coadjuvante, no 3º Rio Cine Festival (1985), pelo papel do “bandidão” Russo, em Os Treze Pontos.
É na perspectiva de resgatar a história do cinema brasileiro e valorizar as produções identificadas como “populares” ou “comerciais” que a exibição e a discussão sobre o filme se mostram sempre necessárias e atuais. Os Treze Pontos incorpora os elementos da narrativa policial sem medo de abrasileirar as características e construir uma história que se desenvolve obedecendo às regras de ação e suspense que estabelecem um diálogo com os espectadores.
Os personagens, o desenvolvimento da trama, os momentos de tensão estão ligados às ideias já conhecidas de muitos outros filmes, mas, é certo, possuem os maneirismos e as particularidades de um diretor que possui ideias próprias e é capaz de mostrar seu estilo de forma consistente para a plateia.
A Caminho do Desenlace
O cinema é uma mídia extremamente eficiente na comunicação com os espectadores, os quais, durante os minutos ou horas da projeção, são transportados para a realidade exibida na telona. As aventuras e desventuras dos personagens se tornam tão presentes que somos enredados pela trama e, praticamente, “sentimos” o que aquelas pessoas experimentam: medo, angústia, alegria, prazer, amor. É a tal da “supressão da realidade” que estabelece um acordo tácito entre a obra cinematográfica e o seu consumidor: nós aceitamos vivenciar a realidade fílmica para usufruir das sensações, das emoções orquestradas pelo diretor.
Daí a importância de nos enxergarmos na tela do cinema, a necessidade de identificar os lugares como um cenário familiar e os comportamentos como atitudes que também podemos adotar. É a nossa aldeia e seus aldeões que devem ser apresentadas pelos artifícios da sétima arte. Portanto, o cinema nacional (ou regional) tem importância estratégica porque revela a cultura em que estamos inseridos com sua linguagem, manias e comportamentos típicos.
A narrativa cinematográfica mais clássica, em que a história se desenvolve com começo, meio e fim bem determinados, é mais eficiente para envolver a plateia. Daí as “regras” de cada gênero para contar uma história de sucesso e garantir uma narrativa fluida com seus momentos de tensão e alívio, certeza e dúvida, medo e riso, bem distribuídos durante o filme.
O filme policial utiliza a possibilidade de violência ao abordar o crime que, muitas vezes, envolve o indivíduo comum numa história de reviravoltas e mudanças; os personagens devem superar dificuldades e ultrapassar limites para sobreviver ou conquistar os seus objetivos. Os Treze Pontos, de Alonso Gonçalves, é a trajetória do fotógrafo Luciano assumindo sua persona de herói e, provavelmente, encontrando o “grande amor” – essa resposta está no final do filme.
Existem dificuldades para os personagens superarem e os espectadores também precisam lidar com as arestas e rusgas que Gonçalves não consegue evitar na construção da trama. Pessoalmente, é uma jornada que vale a pena e podemos participar dela sabendo que, ao final, teremos nos divertido e aproveitado a boa companhia.
Elpídio Rocha – Jornalista e cinéfilo, é um dos organizadores e debatedor do projeto Cinema Comentado Cineclube, em Montes claros (MG), desde 2004. Admirador e fã do cinema brasileiro nos diversos gêneros, estilos e experiências cinematográficas.
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