Montesclarense Carlos Alberto Prates Correia foi diretor assistente do longa-metragem
“Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina. A Máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina… Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério sem querer sem fastio, incapaz de explicar as infelicidades para si. Estava nostálgico assim.” Trecho da página 43 do livro “Macunaíma”, de Mário de Andrade, Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 2000
Inclusão e valorização do cinema nacional. O tema da redação do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) de 2019 vai muito ao encontro das atividades desenvolvidas pelo Cinema Comentado Cineclube, que desde 2003 exibe gratuitamente filmes nacionais e internacionais de qualidade. Na próxima sexta-feira (08/11), às 19h, na sala de audiovisual do Centro Cultural Hermes de Paula, a equipe do Cinema Comentado selecionou para ser exibido o filme do gênero comédia “Macunaíma”, dirigido em 1969 pelo carioca Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), preso pela Ditadura Civil-Militar Brasileira (1964-1985) antes de produzir o filme de uma hora e 43 minutos, que é liberado para maiores de 14 anos, conforme informação da TV Brasil, meio de comunicação público-estatal, mas que só está disponível ao brasileiro via TV a cabo. O filme começa e termina com a música ufanista “Glória aos homens”, uma ironia à repressão da Ditadura.
Responsável pela adaptação, roteiro e direção do filme “Macunaíma”, Joaquim Pedro de Andrade, com o montesclarense Carlos Alberto Prates Correia na assistência de direção, escolheu grande elenco para compor o longa-metragem. O negro Grande Otelo (1915-1993) interpreta Macunaíma ainda bebê e também o filho de Macunaíma com Ci, guerrilheira representada por Dina Staf. O branco Paulo José faz o papel da mãe de Macunaíma e de Macunaíma quando adulto. O negro Milton Gonçalves encarna Jiguê, irmão de Macunaíma. O elenco abrange as participações de Joana Fomn, Maria do Rosário, Rafael de Carvalho, Nazaré O’hana, Zezé Macedo, Wilza Carla, Miriam Muniz e Edy Siqueira. Jardel Filho interpreta Venceslau Pietro Pietra. O elenco ainda inclui Maria Monteiro, Márcia Tânia, Tânia Márcia, Edileia, Rui Sandi, Carmen Palhares, Maria Clara Pellegrino, Waldir Onofre, Hugo Carvana, Maria Letícia, Guaracy Rodrigues, Carolina Whitaker e Maria Lúcia Dahl. A fotografia e câmera é de Guido Cosulich com colaboração de Affonso Beato e de Ricardo Stein. Há ainda a participação dos figurantes das agências, Cristiano e Leite.
Apelidado de “Coração dos Outros” por um dos irmãos, “Macunaíma” é inspirada na obra homônima de Mário de Andrade (1893-1945), um dos idealizadores da Semana de Arte Moderna de 1922, que completará 100 anos em 2022, juntamente com os 100 anos da dita Independência do Brasil. Em seis dias, Mário de Andrade escreveu “Macunaína” e lançou a obra em 1928. O índio Macunaína nasceu negro em Pai de Tocandeira, Brasil, beira do Rio Uraricoera, Roraima. Vivia com os irmãos Jiguê, negro, e Maanape, branco, com a cunhada Sofará, branca, e com sua mãe, branca. Não se sabe o paradeiro do pai do índio. Macunaína não falava. Apenas foi aprender a pronunciar as primeiras palavras a partir dos seis anos de idade. Era uma criança muito traquina. Urinava na mãe na hora de dormir e pegava nas graças (seios) da cunhada. Macunaíma entra debaixo de uma fonte de água mágica e fica branco com cabelos crespos. Daí começam as peripécias do personagem do sertão para o mundo urbano com a influência da colonização europeia portuguesa, inglesa, francesa, holandesa e norte-americana no Brasil e sua miscigenação com indígenas e africanos que forma o povo brasileiro.
“Macunaíma mostra que o balão inchado e colorido do tropicalismo estava furado mesmo e tinha que se esvaziar do mesmo jeito que Macunaíma, personagem, festeja muito, mas acaba sendo comido pelo Brasil”, explica o cineasta Joaquim Pedro de Andrade, que pertencia à geração do Cinema Novo, ao lado de Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos. Macunaíma não tem poderes mágicos no filme, o que dá ao personagem mais realismo. “Em Macunaíma, segundo Joaquim Pedro, tem-se a história de um brasileiro que foi ‘comido’ pelo Brasil, isto é, pelas relações de trabalho, pelas relações sociais e econômicas que ainda são basicamente antropofágicas. Resumindo, Joaquim afirma ser o seu Macunaíma um filme sobre consumo”, relata Heloísa Buarque de Hollanda.
Joaquim Pedro de Andrade acrescenta. “Há novos heróis. Eles tentam devorar quem os devora. Mas os contestadores são industrializados pelos órgãos de divulgação e passam a ser consumidos, isto é, comidos como todos aqueles que aceitam. Enfim, quem pode come o outro. Macunaíma é um sujeito que foi comido pelo Brasil”. O cineasta também esclarece que carece a Macunaíma e à maioria do povo brasileiro “uma visão mais geral, mais ambiciosa e mais consciente. Ele dá sempre os seus golpes com o objetivo limitado, pessoal, individualista. (…) O herói moderno, para mim, é uma espécie de encarnação nacional, cujo destino se confunde com o próprio destino do seu povo. Uma das características fundamentais é a consciência coletiva. Ao contrário de Macunaíma, ele terá de encarnar um ser moral, no sentido de estar possuído por toda uma ética social”, pensa o cineasta.
Lançado em 03 de novembro de 1969, o filme “Macunaíma” foi exibido em 27 de fevereiro de 1970 no Cine Palladium, em Belo Horizonte-MG. Participou do Festival de Brasília/DF e venceu na categoria melhor ator (Grande Otelo), cenografia e figurinos (Anísio Medeiros), roteiro (Joaquim Pedro de Andrade) e ator coadjuvante (Jardel Filho). Foi premiado na categoria melhor filme no Festival Internacional de Mar del Plata, na Argentina, em 1970. A Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) listou em novembro de 2015 “Macunaíma” como um dos 100 melhores filmes brasileiros de todos os tempos. Em artigo intitulado “Macunaíma é a cara do Brasil – de ontem e de hoje”, de Josnei Di Carlo, publicado no site www.outraspalavras.net em 14 de maio de 2019, o autor escreve que “a Constituição de 1988 tem de pedir bênção ao herói de nossa gente. No ano em que ela completou 30 anos, ele completou noventa. A rapsódia de Mário de Andrade foi inspirada nos mitos descritos pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grunberg sobre os povos indígenas da região da tríplice fronteira entre Brasil, Venezuela e Guiana Inglesa. Macunaíma é o herói sem nenhum caráter porque está em constante transformação, espécie de argila a ser moldada pelo medo e pelo prazer. (…) Nasce no fundo do mato-virgem. Renasce na metrópole”.
O longa-metragem é entremeado com narração de Tito de Lemos e as músicas “Mandú Sarará” e “Tapera Tapejara”, de Mário de Andrade e Macalé; “Cecy e Pery”, de príncipe pretinho com Dalva de Oliveira; “Sob uma cascata” com Francisco Alves; “É papo firme”, de Renato Correa e Donaldson Gonçalves com Roberto Carlos; “Arranha-céu”, de Orestes Barbosa e Silvio Caldas com Silvio Caldas; “Cinderela”, de Adelino Moreira com Ângela Maria; “Respeita Januário”, de Luís Gonzaga e Humberto Teixeira com Luiz Gonzaga; “Mulher”, de Custódio Mesquita e Sady Cabral com Silvio Caldas; “Mangagá”, de Geraldo Nunes com Wilson Simonal; “Toda colorida”, de Jorge Bem; “ As tuas mãos”, de Pernambuco e Antônio Maria; “Paisagens da minha terra”, de Lamartine Babo com Francisco Alves, além de participações de Heitor Villa-Lobos e Borodin Strauss. O filme foi parcialmente financiado com recursos originários do imposto sobre remessas liberados pelo Instituto Nacional do Cinema.
Todo o folclore e a superstição característicos do povo brasileiro estão presentes na obra cinematográfica, que tem bela estética, figurino e cenário com muitas cores. Faz uma crítica ao estilo de época anterior ao modernismo: o parnasianismo afrancesado com o seu exigente formalismo. Mário de Andrade revela como descobriu a essência dos brasileiros através da obra de Koch-Grunberg. “O que me interessou em Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim porém a minha conclusão é uma novidade para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não, em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo eminente, ou consciência de séculos tenham auxiliado, o certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro não. Está que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mais ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma. […] Pois quando matutava nessas coisas topei com Macunaíma no alemão Koch-Grunberg. E Macunaíma é um herói surpreendentemente sem caráter. (Gozei)”.
As sessões do Cinema Comentado Cineclube são realizadas na sala de audiovisual do Centro Cultural Hermes de Paula, sempre às 19h. A entrada é gratuita e, após a exibição, acontece um breve bate-papo com o público.
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